Se você é jornalista e, vira e mexe, realiza matérias na rua, certamente já se deparou com alguém reclamando porque não quer aparecer nas fotos ou filmagens, chegando até ameaçar um processo alegando direito de imagem. Talvez essa pessoa não saiba, mas o direito de imagem não se aplica em todos os casos; no jornalismo, por exemplo, as coisas funcionam de maneira diferente.
Antes de abordar completamente o tema do direito de imagem no jornalismo, a título de curiosidade, na imprensa utilizamos dois termos para designar a matéria conforme sua execução. Referimo-nos à reportagem de redação quando o repórter pode realizar todo o trabalho literalmente sem sair da redação e à reportagem de rua quando a equipe vai a campo produzir material, como entrevistas, imagens e tudo o mais necessário para a matéria.
É justamente nas ruas e outros espaços públicos ou privados com entrada autorizada que surgem mais frequentemente situações que demandam habilidade por parte da equipe de reportagem, principalmente em casos de tensão como acidentes, manifestações, assuntos polêmicos, entre outros.
Na rua, nos deparamos com todo tipo de gente. Alguns educadamente pedem a gentileza de não serem filmados ou entrevistados, enquanto outros são agressivos e exigem privacidade. A postura da equipe também varia de acordo com cada abordagem.
Algumas vezes, não dá tempo de ponderar; é preciso decidir rapidamente, seguindo protocolos da empresa ou conforme o julgamento do próprio profissional no calor da hora. Por exemplo, durante o conflito, o repórter cinematográfico tem a opção de fazer a imagem e submetê-la à avaliação de seus superiores ou de não fazê-la, e correr o risco de ser cobrado posteriormente por não tê-la feito.
Não quero aparecer
Antes que o repórter pudesse se desvencilhar da mulher e continuar dando a notícias, um homem que estava na mesa ao fundo, bebendo com amigos e que muito provavelmente ninguém havia notado a presença dele até então, de maneira ignorante dirigiu-se ao repórter cinematográfico reclamando que estava sendo filmado.
O repórter, visivelmente constrangido e desapontado, desistiu de continuar o link e devolveu a palavra para a apresentadora. Ela, acertadamente, comentou sobre o ocorrido: “Ele foi para a frente da câmera e não quer aparecer? Então, é só ficar de costas; não teria aparecido.”.
Infelizmente, cenas como essa, de desrespeito ao trabalho dos jornalistas, são comuns. As entradas ao vivo são momentos de tensão para os envolvidos. Todos que estão na rua e na switcher estão concentrados para que tudo dê certo na transmissão.
Além de estar atenta à informação, a equipe recebe orientações pelo ponto, preocupa-se com áudio, enquadramento, imagem e lida com adversidades as quais não se tem controle. A situação é mais complicada ainda quando o profissional trabalha sozinho na rua, como é o caso do videorepórter.
Atrapalhar uma gravação e, principalmente, um link (entrada ao vivo) ao bel-prazer é mais que uma tremenda falta de respeito com o trabalho de outra pessoa; é falta de educação e de uma maldade sem tamanho.
Direito de imagem
Afinal, o rapaz estava no seu direito de exigir que não fosse filmado? Nesse caso, não. Naquele contexto, todos que estavam no ambiente poderiam ter sua imagem exposta sem prejuízo jurídico para a emissora de TV. Pois, em vias públicas e eventos públicos qualquer pessoa pode ser filmada e fotografada, desde que registro seja utilizado para fins jornalísticos e seja de interesse público, o mesmo vale para servidores públicos em exercício da função.
Existem algumas exceções a essa regra. Se o uso da imagem for feito de forma indevida, como para fins comerciais ou para fins depreciativos, a pessoa retratada pode requerer indenização por danos morais.
Além disso, o uso da imagem de pessoas em via pública para fins jornalísticos deve respeitar a dignidade da pessoa humana. Por exemplo, não é permitido divulgar imagens de menores de idade, de pessoas que estejam em situação de vulnerabilidade, como pessoas que estejam despidas ou que estejam em situação de flagrante delito.
Geralmente, as empresas jornalísticas têm um manual próprio baseado na legislação e diretrizes internas para auxiliar os jornalistas quanto a atitude que se deve ter diante de tais circunstâncias. Além disso, seguimos códigos de ética e conduta, como o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, elaborado pelo Conselho Federal de Jornalismo (CFJ). Enfim, o bom senso e a ética moral e profissional são sempre bem-vindos em qualquer ambiente.
O que diz a legislação
Para não perder o costume, vou listar algumas leis referentes ao assunto.
- Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997): Estabelece regras para a exploração de serviços de telecomunicações, incluindo a radiodifusão.
- Código Civil (Lei nº 10.406/2002): Estabelece regras sobre direitos da personalidade, incluindo o direito de imagem.
- Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990): Estabelece regras sobre a proteção da criança e do adolescente, incluindo a proibição da exploração da imagem de crianças e adolescentes.
- Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998): Estabelece regras sobre a proteção dos direitos autorais, incluindo o direito de reprodução de obras intelectuais.
- Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/18): Estabelece que a utilização de imagens pessoais deve ser feita de forma lícita e transparente, e que as pessoas têm o direito de controlar o uso de suas imagens.
- Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso IX, que estabelece que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Referência ao direito à liberdade de expressão, incluindo a liberdade de imprensa.
- A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) já se mostrou favorável à divulgação de imagens em vias públicas sem autorização prévia para fins jornalísticos, porém com restrições. Inclusive, em 2018, negou indenização a familiares por publicação de foto de cadáver em jornal.
- Súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) também descreve sobre a utilização de imagens. Em 2017, o tribunal negou indenização à manifestante que teve a foto usada em uma reportagem, alegando que a divulgação de imagens de pessoas em manifestações públicas não requer autorização prévia, quando para fins jornalísticos.
Não precisa de autorização quando
Todas as permissões listadas abaixo têm a ressalva de não violar o direito à privacidade, não ofender a honra ou dignidade das pessoas retratadas, e não causar danos ou constrangimentos à pessoa.
Não é necessário autorização quando a imagem for utilizada para fins:
- Jornalísticos
- Científicos ou educacionais
- Artísticos ou culturais
- Segurança Pública
Situações e pessoas que poderão ser fotografadas ou filmadas sem prévia autorização:
- Pessoas públicas, como artistas, políticos e esportistas, possuem um grau menor de expectativa de privacidade em relação às suas imagens.
- Pessoas em locais públicos, como parques, praças ou ruas. Entende-se que, ao estar em um local público, as pessoas têm uma expectativa reduzida de privacidade.
- pessoas em eventos públicos, como shows, desfiles, manifestações, reuniões abertas e eventos esportivos.
- Pessoas em obras de arte, como pinturas, esculturas e fotografias.
- Pessoas em vídeos de segurança.
- Imagens Incidentais, quando uma pessoa aparece casualmente em uma imagem mas não tem relação com o assunto.
- Imagens de servidores públicos em exercício da função, como policiais, bombeiros, agentes públicos, etc. Nesse caso, considera-se a imagem do servidor público como um bem público, e é possível utilizá-la sem o seu consentimento. Isso ocorre porque o servidor público está exercendo uma função pública, e sua imagem está associada ao exercício dessa função.
- Quando a utilização da imagem é necessária para proteger a vida ou a segurança de uma pessoa.
Há ainda casos em que a pessoa consente a gravação com a condição de não ser identificada. Nesse cenário, os profissionais utilizam diversos recursos para distorcer a voz e preservar a imagem da fonte.
Em todos os contextos, é fundamental o uso respeitoso das imagens, evitando retratar as pessoas de maneira difamatória ou invasiva.
Na prática
No dia a dia, o que dá certo mesmo é um bom jogo de cintura. Ao abordar as pessoas na rua para alguma entrevista, o famoso ‘povo fala’ – aquelas entrevistas não agendadas em que a equipe de reportagem vai para a rua literalmente implorar para que alguém responda às perguntas ou conte uma história relacionada à matéria –, é preciso ter paciência, bom humor e sorte.
O ‘povo fala’ é o terror da maioria dos repórteres. É o meu também, confesso, embora eu o faça muito bem, sem falsa modéstia; é na rua que consigo as melhores entrevistas. É também na rua que sempre encontramos alguém dizendo não querer aparecer, mesmo que o assunto não tenha a ver com a pessoa em questão.
Quando isso acontece comigo, sempre respondo: “Ok! Se você não quer, não iremos gravar, respeitamos sua vontade. Entretanto, se não quer aparecer é, não passe ou fique em frente à câmera. Afinal, estamos em um espaço público.”.
Mesmo assim, alguns são grosseiros e ameaçam a equipe. Dependendo das circunstâncias, nem discuto; digo que quem irá decidir pelo conteúdo publicado serão os editores, o que de fato é verdade. São os editores de imagem e de texto que aprovam o material.
É importante ressaltar que deve-se proteger a liberdade de imprensa como um direito fundamental, que de fato é. Mas, cabe à mesma imprensa respeitar os limites impostos pela legislação e não divulgar imagens indiscriminadamente. Há inúmeros recursos para entregar a informação sem expor desnecessariamente uma pessoa.
Reforço mais uma vez: o bom senso e a ética jornalística devem falar mais alto na decisão de se é apropriado usar a imagem de uma pessoa em uma situação específica. E se você está em local público e não quer aparecer, é simples: fique fora do alcance das câmeras.
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