{"id":6070,"date":"2023-01-15T15:41:00","date_gmt":"2023-01-15T18:41:00","guid":{"rendered":"https:\/\/adrianacardoso.me\/?p=6070"},"modified":"2024-01-17T16:36:21","modified_gmt":"2024-01-17T19:36:21","slug":"jornalistas-sao-escutadores-de-historias","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/adrianacardoso.me\/blog\/jornalistas-sao-escutadores-de-historias\/","title":{"rendered":"Jornalista: um escutador de hist\u00f3rias"},"content":{"rendered":"\n

Sempre ouvi dizer que jornalista \u00e9 um contador de hist\u00f3rias, eu discordo; pra mim, na verdade, somos escutadores de hist\u00f3rias. No m\u00e1ximo, transmitimos o que outras pessoas nos disseram, claro, depois de confirmar os fatos.<\/p>\n\n\n\n

A ess\u00eancia do jornalismo \u00e9 informar, levar conhecimento, dar voz aos que ningu\u00e9m ouve. Mas, para ter uma narrativa que realmente cative os espectadores, antes de tudo, o jornalista tem que obrigatoriamente ser um escutador de hist\u00f3rias; ele tem que saber escutar e n\u00e3o apenas ouvir.<\/p>\n\n\n\n

Ouvir e escutar s\u00e3o duas palavras que, embora parecidas, t\u00eam significados diferentes. Ouvir \u00e9 um processo mec\u00e2nico, que consiste na capta\u00e7\u00e3o de sons pelo ouvido. Quando ouvimos, estamos simplesmente recebendo os sons, sem necessariamente prestar aten\u00e7\u00e3o neles.
Escutar, por outro lado, \u00e9 um processo ativo, que consiste na aten\u00e7\u00e3o e compreens\u00e3o dos sons. Quando escutamos, estamos atentos ao que est\u00e1 sendo dito, tentando entender o significado das palavras e das ideias.<\/p>\n\n\n\n

A escuta \u00e9 uma habilidade fundamental para qualquer jornalista, e ela deve ser feita com respeito e empatia, por mais dif\u00edcil que seja assimilar o que est\u00e1 sendo dito. Quando n\u00e3o escutamos devidamente, corremos o risco de perder a chance de escrever uma grande reportagem, ou pior, publicar a informa\u00e7\u00e3o pela metade ou at\u00e9 errada.<\/p>\n\n\n\n

Vi isso acontecer algumas vezes; uma delas foi durante a cobertura de um acidente com o \u00f4nibus de uma equipe de futsal.<\/a> O cinegrafista que estava comigo descobriu algo comovente sobre o roupeiro. Como a hist\u00f3ria era boa, ap\u00f3s entrevistamos o roupeiro, a passamos para os colegas de outra emissora (\u00e9 comum trocarmos informa\u00e7\u00f5es quando n\u00e3o se trata de um assunto exclusivo). Entretanto, o colega parecia n\u00e3o compreender o que foi dito, e entrou no link com a informa\u00e7\u00e3o equivocada. Por isso, foi corrigido ao vivo pelo pr\u00f3prio entrevistado v\u00e1rias vezes.<\/p>\n\n\n\n

A hist\u00f3ria principal pode estar no detalhes<\/h2>\n\n\n\n

Os entrevistados enriquecem, d\u00e3o vida \u00e0 mat\u00e9ria. As pessoas querem falar, contar sua vers\u00e3o dos fatos e, em alguns casos, apenas desabafar. A forma como s\u00e3o tratadas enquanto relatam sua hist\u00f3ria faz toda a diferen\u00e7a. Al\u00e9m disso, quanto mais mostramos interesse genu\u00edno, mais conex\u00f5es fazemos com as fontes que, consequentemente, acabam nos entregando al\u00e9m, e o contexto muda totalmente.<\/p>\n\n\n\n

Em v\u00e1rias ocasi\u00f5es, a minha pauta mudou de rumo ap\u00f3s conversar com os entrevistados. A produ\u00e7\u00e3o nos entrega uma pauta com o resumo do assunto e a dire\u00e7\u00e3o que devemos dar \u00e0s mat\u00e9rias. Mas, \u00e0s vezes, ao chegarmos ao local marcado, descobrimos que a situa\u00e7\u00e3o n\u00e3o \u00e9 bem da forma como foi passada para os produtores.<\/p>\n\n\n\n

Quando vemos o cen\u00e1rio de perto, questionamos alguns pontos, falamos com outras pessoas envolvidas, uma nova informa\u00e7\u00e3o aparece, analisamos o todo e os detalhes, a reportagem toma um caminho diferente do que pens\u00e1vamos no in\u00edcio, ou ainda, outra pauta paralela e at\u00e9 mais interessante surge nesse processo. Claro que as decis\u00f5es de alterar a produ\u00e7\u00e3o s\u00e3o sempre em conjunto com a equipe de produtores e editores, ap\u00f3s a equipe de reportagem relatar o que apurou in loco.<\/p>\n\n\n\n

Aquela reportagem especial pode estar onde menos esperamos, basta ter os ouvidos atentos. Sem contar que, observando mais que falando, o jornalista amplia o entendimento, encorpa os argumentos, fica mais pr\u00f3ximo do real e enriquece a qualidade da narrativa.<\/p>\n\n\n\n

Al\u00e9m disso, a escuta ajuda a conhecer o gosto e as necessidades do p\u00fablico. S\u00e3o nessas trocas, que as pessoas comunicam o que querem saber e como querem receber as informa\u00e7\u00f5es, o que pensam sobre o mundo e como veem a realidade.<\/p>\n\n\n\n

Curadores de hist\u00f3rias reais<\/h2>\n\n\n\n

Se reparar, as reportagens s\u00e3o sempre em terceira pessoa, as informa\u00e7\u00f5es s\u00e3o segundo fulano ou de acordo com tal institui\u00e7\u00e3o ou pesquisa e nunca na \u00f3tica pessoal do jornalista, mesmo que a not\u00edcia o afete de alguma forma ou aquilo que ele relate seja a perspectiva dele sobre a perspectiva das fontes.<\/p>\n\n\n\n

Ficou confuso? Eu explico. O rep\u00f3rter sempre escreve a hist\u00f3ria de algu\u00e9m, de um lugar ou fato, contada por esse algu\u00e9m ou por outras pessoas envolvidas. Depois de colher o ponto de vista dos entrevistados, ele seleciona quais partes da conversa vai usar e de que forma vai transmitir as informa\u00e7\u00f5es que recebeu. Ou seja, da perspectiva dele de escutador ele narra a perspectiva dos entrevistados. Podemos dizer que o jornalista se torna um curador sens\u00edvel das experi\u00eancias compartilhadas com ele.<\/p>\n\n\n\n

Por isso, \u00e9 t\u00e3o importante ser cuidadoso com todas as informa\u00e7\u00f5es que nos s\u00e3o confiadas. A fonte, ao fornecer o conte\u00fado, acredita que ser\u00e1 utilizado de forma respons\u00e1vel, e assim, como o jornalista, est\u00e1 ciente das consequ\u00eancias que a divulga\u00e7\u00e3o das informa\u00e7\u00f5es pode acarretar. Portanto, todas as hist\u00f3rias devem ser respeitadas.<\/p>\n\n\n\n

Nessa avalia\u00e7\u00e3o, \u00e9 primordial que o jornalista perceba os golpes e manipula\u00e7\u00f5es da fonte. \u00c9 comum, principalmente para os ainda inexperientes, ou os apenas focados em ter uma grande mat\u00e9ria, ou por pura distra\u00e7\u00e3o, se deixarem levar em mentiras. Temos v\u00e1rios casos famosos de rep\u00f3rteres que foram ludibriados pelos entrevistados, alguns com fins tr\u00e1gicos inclusive. Vale ressaltar que nenhum de n\u00f3s est\u00e1 livre de cair em armadilhas.<\/p>\n\n\n\n

A escuta que pode salvar vidas<\/h2>\n\n\n\n

Sabemos que o jornalismo exerce um papel social por meio da informa\u00e7\u00e3o e faz isso levando a p\u00fablico diversas hist\u00f3rias que criam identifica\u00e7\u00e3o e at\u00e9 poss\u00edveis solu\u00e7\u00f5es.<\/p>\n\n\n\n

Por exemplo, ao relatar as necessidade de uma comunidade, provoca os governantes a implantarem pol\u00edticas p\u00fablicas naquele local e em outros lugares com problemas semelhantes. A not\u00edcia de um caso de viol\u00eancia dom\u00e9stica mostra o caminho e incentiva outras v\u00edtimas a denunciarem seus agressores. Uma den\u00fancia bem apurada de corrup\u00e7\u00e3o obriga o poder p\u00fablico a se explicar e responsabilizar os culpados. Hist\u00f3rias de pessoas que sobreviveram a situa\u00e7\u00f5es extremas ou superaram dificuldades d\u00e3o esperan\u00e7a a quem est\u00e1 passando pelo mesmo sofrimento.<\/p>\n\n\n\n

Em todos os casos, a hist\u00f3ria \u00e9 sempre feita por pessoas. Seja o fato que for, s\u00e3o as testemunhas, s\u00e3o as pessoas impactadas de alguma maneira que contam a vers\u00e3o delas do ocorrido. \u00c9 assim que constru\u00edmos uma reportagem, com depoimento de pessoas. Al\u00e9m disso, quando as pessoas reais relatam o que passaram, imediatamente cria conex\u00f5es com quem est\u00e1 lendo, assistindo ou ouvindo.<\/p>\n\n\n\n

Como j\u00e1 disse antes, \u00e9 uma grande responsabilidade transmitir as informa\u00e7\u00f5es confiadas a n\u00f3s, pois atrav\u00e9s da forma como as repassamos, outras pessoas aprendem e compreendem sobre o mundo ao seu redor, se inspiram, e tomam decis\u00f5es. Uma not\u00edcia pode mudar a vida de algu\u00e9m.<\/p>\n\n\n\n

O jornalista tem a responsabilidade \u00e9tica de ser defensor das diversas vozes que constituem a nossa sociedade. Para fazer exercer essa fun\u00e7\u00e3o de maneira justa e consciente, requer do profissional escuta emp\u00e1tica e atenta, sensibilidade social e cultural, e disposi\u00e7\u00e3o constante para aprender com a experi\u00eancia de outras pessoas. J\u00e1 diz a sabedoria popular que \u2018temos dois ouvidos e duas bocas\u2019, justamente para, de acordo com a B\u00edblia, \u2018sermos todos prontos para ouvir, tardios para falar\u2026\u2019<\/p>\n\n\n\n

A pr\u00e1tica leva a perfei\u00e7\u00e3o<\/h2>\n\n\n\n

Felizmente, a escuta \u00e9 uma habilidade que pode ser desenvolvida com a pr\u00e1tica. Eu, particularmente, acho incr\u00edvel ser uma jornalista escutadora de hist\u00f3rias<\/a>. As pessoas t\u00eam sempre algo a nos ensinar pelas suas experi\u00eancias. Se pensarmos bem, a vida de todos n\u00f3s renderia um livro.<\/p>\n\n\n\n

Vou descrever algumas t\u00e9cnicas que utilizo no dia a dia e talvez possa te ajudar:<\/p>\n\n\n\n